Não existe certeza maior de ter superado de vez uma experiência traumática que ouvir aquela canção tema do seu infortúnio e não ter nem um gatilho. Essa playlist pode até não ser muito extensa porque muitas vezes uma só música cutuca forte aquela ferida que a gente jurava estar totalmente fechada - e aí dá-lhe sofrência!
Dizem que o tempo cura tudo, mas um bom termômetro da nossa saúde emocional é revisitar involuntariamente nossas dores e medos e sair ileso ou menos abalado da experiência. A música nos ajuda nessa jornada porque ela pode ser tanto remédio quanto veneno para um coração ou alma em reabilitação - dependendo das sensações e lembranças que aquela melodia desperta.
No filme "Dormindo Com o Inimigo" (1990) , a personagem de Júlia Roberts era espancada pelo marido (Patrick Bergin) ao som dos clássicos de Berlioz. Depois de simular a própria morte para fugir do abusador, Sara desenvolve pânico das músicas do compositor francês. Pudera!
No filme "Verão de 85" (2021), o boa vida David conquista o inexperiente Alex colocando "Sailing", de Rod Stewart, para tocar no walkman do mozinho em meio a uma boate lotada (video abaixo). É uma das cenas mais bonitas do cinema de todos os tempos e marca o começo do sofrimento do iludido adolescente que experimenta o primeiro amor. O filme está disponível no YouTube.
Quem não cairia no golpe disfarçado de declaração de amor como esse? E sim, a música do cantor inglês virou um gatilho para o pobre Alex mais tarde. Eu mesmo passei meses ouvindo Rod Stewart e xingando o David pela canalhice! Me deu gatilho também.
A lista de músicas que marcam a saga de personagens no cinema é enorme - muitas delas mexem com a gente também. Mas a que ponto algumas delas vão continuar a nos machucar? Tudo é mesmo uma questão de tempo e um bocado de vontade de deixar pra trás aquilo que elas significam...
Há um tempo corria léguas quando tocava "Sweet Nothing" (Florence e Calvin Harris) e "Nothing Breakes Like The Heart" (Miley Cirus). Ouvir essas músicas - apesar da melodia animada - me dava frio no estômago. Num passado distante "Negro Amor" (Gal Costa) me jogava no chão... Conheço alguém que na infância de pavor de "Wulthering Heigths" da Kate Bush. Minha lista de gatilhos musicais é enorme porque tem muitos arquivos do menino que adorava ouvir rádio. Quem nunca voltou à infância com "aquela" música?
O que funciona mesmo para diminuir a lista de músicas que fazem nossos cotovelos e coração doerem? Foco no amadurecimento emocional e ressignificação das experiências ao longo da vida. Pra mim funcionou que foi uma beleza...
Música e memória estão intimamente ligadas. Ouvir uma música que nos faz bem não tem preço; por outro lado lembrar de momentos ruins despertados por uma melodia nos parece bem pior. Isso acontece porque quando ouvimos uma canção o cérebro produz uma ilusão perceptiva que dispara a uma série de imagens coladas tiradas do nosso arquivo mental.
Apesar de não podermos controlar que imagens (e sentimentos) venham à tona na nossa cabeça, o mínimo que devemos aprender é a lidar com elas. Gosto muito de uma frase que diz que não podemos mudar o passado (nem sua trilha sonora), mas podemos cuidar do nosso presente e planejar o futuro - de preferência acompanhados de uma playslist cheia de boas memórias.
Ah! Nesse interim, também funciona muito dar tempo ao tempo pra que se possa arrancar a casquinha seca da ferida no coração e na alma sem que ela volte a sangrar. No mais é não economizar no band-aid emocional e continuar a nada. Você Já fez ou está fazendo aas pazes com "aquela" música?
Adorei o post!! Nos últimos meses eu tenho pensado muito nesse assunto, como que uma música que me faz tão bem nos momentos tristes, estressantes (e alegres) pode me deixar ainda mais triste e estressado? É meio louco, mas é questão de tempo e controle mesmo! E alguns dias depois, quando eu aperto play de novo, a experiência é outra. Só alegria! Hahaha